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MARCHA ATLÉTICA

Aonde Érica quer chegar? Pernambucana brilha com conquista do circuito mundial

Superesportes refaz trajetória da atleta até inédita marca para o Brasil

postado em 20/08/2017 16:52 / atualizado em 20/08/2017 19:32

Wander Roberto/Exemplus/COB
A serenidade e a calma na voz são de quem sabe lidar com a pressa. De quem aprendeu a viver a vida passo a passo, sem tirar os pés do chão. Literalmente. Érica Rocha da Sena segue nesse ritmo há 19 anos. Aos 32 anos, flerta com o auge da carreira. A quarta colocação nos 20 km da marcha atlética no Mundial de Atletismo, no último fim de semana, com direito ao recorde sul-americano, materializa a dedicação e a força de vontade da pernambucana, que desde os 13 anos segue no mesmo passo. Sempre para frente. De Cuenca, no Equador, onde reside com o seu marido e treinador, Andrés Chocho, ela conversou com o Superesportes sobre a sua trajetória na modalidade. O início, os bons e maus momentos, as vezes em que quase desistiu, as pessoas que não deixaram desistir, os resultados recentes, como a inédita conquista do circuito de Marcha Atlética, anunciada na última sexta-feira, o futuro.

O início na marcha

“Eu comecei a treinar na minha escola, que é a Santa Apolônia, que fica em Camaragibe, com a minha professora de educação física, Elizabeth Medeiros. Ela chegou na minha sala, se apresentou e disse para a gente que tinha um grupo de atletismo, que quem estivesse interessado comparecesse no dia. Não lembro quais eram os dias. E eu fui só de curiosidade, para ver como é que era e tal. Então eu fui lá e gostei.”

Como quase todas as grandes descobertas desportivas do país, Érica Sena surgiu por acaso. Começou como uma brincadeira, como tem que ser, quando tinha 13 anos. Gostava de praticar o atletismo porque todas as amigas do bairro faziam. Encarava como um momento de lazer. Começou fazendo todas as provas. Confessa que os seus resultados não eram assim tão promissores. Até que um dia viu algumas meninas marchando durante o treino. Perguntou à professora do que se tratava. Era a marcha atlética.

A curiosidade lhe levou aos treinos. Pouco tempo depois, em sua primeira competição, venceu quem lhe chamou a atenção marchando. Mesmo assim, ensaiou desistir da marcha. A primeira tentativa de desistência. Falou para a professora que não queria fazer mais porque eram muitas voltas na pista. “Não, você vai fazer, você tem talento”, escutou como resposta. “Aí eu continuei treinando”, diz Érica.

A professora Elizabeth

“A professora Elizabeth foi praticamente a minha segunda mãe. Ela é uma pessoa maravilhosa. Até hoje eu tenho contato com ela. A gente sempre conversa, eu sempre mando mensagem para ela, ela manda mensagem para mim. Eu tenho ela num lugar muito especial na minha vida.”

O carinho pela “professora” Elizabeth faz o tom da voz mudar. O cansaço pelo treino recente é substituído pela leveza do carinho, da gratidão. Do início. Elizabeth foi quem conduziu Érica para a pista e quem não a deixou sair dela. Ajudou-lhe nos treinos, a comprar material para competir, tênis, roupas. Foi quem deu todo o suporte no princípio. A pessoa que plantou a semente do que ela é hoje. Gratidão que divide com outro personagem importante do seu nascimento como atleta: o “treinador” Abraão Nascimento, técnico com quem ficou mais tempo.

“Ele me fez ver a marcha um pouco diferente, um pouco mais profissional. Eu evoluí muito com ele. Fiquei da categoria menor até a categoria adulto com ele. Ele me ajudou muito, foi um paizão, é superespecial para mim”, diz.

A quase desistência

“Eu pensei em desistir porque eu estava meio que cansada da vida que eu estava levando. Estava meio desanimada, porque eu estava na categoria adulta já há alguns anos e não melhorava, estava sempre naquela mesma, não conseguia ficar nem entre as três melhores do Brasil. Não sentia nenhuma motivação para continuar.”

O período da segunda “quase desistência” aconteceu entre 2009 e 2010. Érica indica como fator principal a falta de resultados, de falta de motivação. Mas para tudo há uma causa. E essa falta de resultados, de motivação, advinha da carência da estrutura, de investimentos. Érica não é o fruto de uma política eficiente de esportes. É a exceção de uma política deficitária, paupérrima, que prefere aplaudir a superação das dificuldades a resolvê-las.

Érica não expõe tais fatores quando fala das dificuldades. Sai meio que sem querer quando fala de quem, pela primeira vez, já passados mais de dez anos e carreira, decidiu investir na marchadora Érica no sentido técnico, emocional e financeiro. “Ele foi a peça fundamental para o meu sucesso hoje. Por quê? Porque ele foi a primeira pessoa que investiu em mim (...) Há uns anos atrás eu não recebia ajuda de ninguém, não recebia ajuda da Confederação, não tinha um clube bom, então era supercomplicado. Ele foi a primeira pessoa que segurou na minha mão e me ajudou com o que pôde.” “Ele”, no caso, é Andrés Chocho.

Andrés Chocho

“O meu esposo me fez encarar a marcha de uma maneira totalmente diferente. Antes eu via a marcha mais como, não sei, uma profissão. Não que eu não veja hoje como uma profissão, mas eu vejo de uma maneira diferente, porque eu amo o que eu faço. E antes não era assim, não tinha aquele carinho, não tinha aquela paixão, não era aquela coisa de gostar do que eu faço. Eu fazia mais por fazer mesmo, eu achava que era boa naquilo e fazia. Ele me ensinou a amar o que eu faço.”

Érica admite: era preguiçosa para treinar. Talvez, por isso, tenha estagnado na carreira entre 2009 e 2010. Os mesmos tempos, o mesmo treino, a falta de desafios a fizeram pensar em desistir das pistas, buscar um horizonte profissional distinto.

A virada na carreira aconteceu no período seguinte. Coincide com a chegada em sua vida de Andrés Chocho. Companheiro de treinos, ele viria a se tornar marido e técnico. No fim de 2011, eles foram morar em Cuenca, no Equador. Estabeleceram, lá, na altitude de 2.506 metros, a base de treinos.

Sobretudo, Érica aprendeu com Chocho a marchar com paixão. Os resultados vieram de forma assustadora. “Quando eu cheguei ao Equador, nos 20 km eu tinha a marca de 1h42min, era a minha melhor marca. De lá para cá, foi só evoluindo, evoluindo, cada ano mais”, diz ela, que no último fim de semana cravou o tempo de 1h26min59s. A melhor marca da sua vida, recorde sul-americano da prova. Tempo que lhe rendeu a quarta colocação no Mundial de Londres. O título do Circuito de Marcha da IAAF, a Federação Internacional de Atletismo (sigla em inglês), anunciado na última sexta.

A maior tristeza

“Nesse ano de 2012 eu tinha feito a marca de 1h31min53. Eu era a melhor atleta da América, a que tinha a melhor marca, e eu fui a única que fiquei de fora dos Jogos Olímpicos de Londres. Todas as outras que tinham uma marca inferior à minha foram. Atletas da Colômbia, da Bolívia, do Peru, todas foram e eu fiquei de fora devido aos critérios da Confederação Brasileira. E foi um critério que me pareceu injusto.”

Érica não reclama. Chama para si a responsabilidade pelos tropeços. Divide os méritos. Mas há um momento específico em sua trajetória no qual as consequências transcendem os seus defeitos e as suas virtudes. Fincado em 2012, como mágoa. A maior tristeza da sua carreira, segundo a atleta.

Envolve os Jogos de Londres, que poderiam estar em seu currículo como a estreia olímpica. Não foi por uma alteração nos índices. Na época, a IAAF havia estabelecido a marca de 1h33min30 como índice A. Era preciso alcançá-la uma vez nas seletivas. O tempo de Érica era suficiente. Não pela Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt), que estabeleceu como índice para ir aos Jogos de Londres o tempo de 1h31min17s.

O sonho olímpico foi adiado para o Rio-2016. Há exatamente um ano, no dia 19 de agosto de 2016, Érica competiu pelas ruas cariocas. Brigou pelo pódio até a última volta. Perdeu o ritmo e terminou na sétima colocação. Tivesse competido em Londres, talvez chegasse ao Rio mais forte. “Eu chegaria mais experiente. O Rio foi a minha primeira Olimpíada, eu cheguei totalmente inexperiente. Talvez fosse um pouco mais fácil, não sei, uma estratégia diferente, algo desse tipo.”

O bronze herdado

“Foi muito emocionante para mim, eu estava na França, fazendo um campi para os jogos olímpicos quando recebi a notícia. Na verdade são dois sentimentos aí. Um é que você fica muito chateada pela injustiça do doping, é injusto você competir com uma pessoa que estava com uma certa vantagem sobre você, e por outro lado é legal porque você vê que a justiça existe, a justiça foi feita e a medalha veio.”

Érica não teve o prazer de subir ao pódio em sua primeira conquista grandiosa na marcha. Em maio de 2016, ela havia terminado o Mundial de Marcha, disputado em Roma, na quarta colocação. No fim de julho, quando estava finalizando a preparação para os Jogos Olímpicos do Rio, recebeu a notícia de que a primeira colocada, a chinesa Liu Hong, testou positivo para doping. Foi eliminada. Érica, assim, herdou o bronze.

A pernambucana fala da conquista com emoção, principalmente pela evolução no tempo. Cravou 1h27min18, mais de um minuto abaixo da sua melhor marca até então: 1h28min40. A alegria existiu, mas a própria atleta admite: foi incompleta.

“Eu fiquei muito feliz. Espero conquistar uma medalha outra vez, mas não dessa forma, mas subindo no pódio, que é o momento mais emocionante, quando você sobe no pódio e recebe a medalha. Espero que esse momento chegue um dia.”

Quarta colocação no Mundial

“Essa quarta colocação no Mundial de Londres, para mim, tem dois sentimentos: Um que é o sentimento bom, positivo, que é uma colocação muito boa. Além desse resultado, eu bati o recorde sul-americano, fiz a minha melhor marca na competição mais importante do ano, e planejar o ano assim é muito difícil, você chegar na melhor forma, na principal competição do ano, é muito difícil, poucos atletas conseguem. O lado triste da história é que eu cheguei muito próximo de uma medalha. A gente treinou para isso, a gente treinou para chegar muito forte para essa competição. Eu sabia que chegando próximo da minha melhor marca ou fazendo a minha melhor marca eu poderia ser medalha.”

A tão sonhada medalha não veio por muito pouco. Por 23 segundos, exatamente. Tempo que Érica de Sena ficou atrás da terceira colocada no Mundial de Londres, a italiana Antonella Palmisano. Para a segunda colocada, a mexicana Maria Guadalupe González, a distância foi de 40 segundos. Quarenta e um para a medalha de ouro, a chinesa Jiayu Yang. Poderia ter alcançado o objetivo traçado não fosse um contratempo nos últimos dois quilômetros da prova. Ela, que até ali havia feito uma corrida limpa, sem advertências, viu as placas dos árbitros aparecerem e se multiplicarem em seu caminho.

Elas são mostradas quando os juízes notam alguma irregularidade na marcha. Indicam as advertências. Érica notou quatro. Teoricamente, estaria desclassificada - o limite são duas. Há casos, no entanto, em que o alerta “não sobe para o quadro”, o painel no qual há o registro, para controle dos corredores.

Não é contabilizada. Foi o que aconteceu. Só duas foram. “Só que o atleta não tem como saber. Então, tem que estar sempre olhando para o quadro. Faltava pouco tempo, eu poderia ser desclassificada na linha de chegada ou até depois da linha de chegada . Devido a isso, eu preferi não arriscar e diminuí o ritmo. Não briguei mais pela medalha, faltando dois quilômetros para terminar a prova”, lamenta.

Aonde Érica quer chegar?

A entrevista com Érica foi realizada via WhastApp. As perguntas enviadas durante o dia aguardavam as respostas à noite. Uma delas, entre as últimas, passou despercebida. Era sobre os próximos passos na carreira, concluída de forma direta: “Aonde Érica quer chegar?”

A resposta que faltou já estava dada. Nas entrelinhas de cada frase. Uma resposta que começou a ser construída no Recife. Na menina de 13 anos curiosa que descobriu o atletismo por acaso. Que achava que tudo era uma grande brincadeira. E que, no meio desse acaso, descobriu a marcha atlética. A Érica que pensou em desistir por causa da quantidade de voltas que dava na pista, mas continuou graças a Elizabeth. A Érica lapidada por Abraão, que com tão pouco apoio e estrutura chegou longe. E quis mais.

Quis tentar desistir pela segunda vez, desmotivada pela falta de evolução nos resultados. Mas Érica continuou. Desta vez graças a Andrés Chocho. O equatoriano que mostrou a ela não lhe faltava talento, mas ver a marcha atlética com paixão. Não falando, mas mostrando na prática, treinando, ganhando, perdendo. Inspiração que tornou-se técnico e marido.

A resposta, enfim, está em Cuenca. A cidade equatoriana onde Érica reside com Andrés, que vê, praticamente todos os dias, a marchadora treinando. Nem andando nem correndo. Seguindo em frente.