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KUNG FU

Após perder 99% da visão, atleta volta a lutar para recuperar contato social

A brasiliense Kimberlly Lopes, 22 anos, recebeu convite para disputar o Campeonato Brasiliense de Kung Fu

postado em 15/08/2017 11:00

Certo dia, em uma academia de artes marciais de Ceilândia, o treinador Elineldo Santos disse aos pupilos do kung fu que fechassem os olhos, mas que continuassem executando os movimentos. “A aula virou aquela bagunça”, lembra o professor de 38 anos. Ao autorizar a turma a abrir novamente os olhos, apenas Kimberlly Lopes, 22 anos, continuava sem enxergar. Por uma medicação prescrita equivocadamente a diabéticos, como Kimberlly, a jovem perdeu 99% da visão. Após passar dois anos sem querer sair de casa, ela voltou a vestir um quimono de kung fu em um campeonato oficial, que contou com 150 inscritos.

“Por mais que tenha um pouco mais de dois anos que eu perdi a visão, eu só aceitei sair de casa agora. Então, eu ainda não sei ser uma deficiente visual”, admite a jovem moradora do Gama. Por mais que a família dela tenha tentado convencê-la a ir a uma escola, ela negava. “Eu não aceitava de forma alguma. Não conseguia nem sair para a rua. O barulho me assustava, as pessoas me assustavam”, conta Kimberlly.

A retomada de uma rotina foi conquistada aos poucos. Primeiro, Kimberlly passou a frequentar o Centro de Ensino Especial de Deficientes Visuais, na Asa Sul, no início de 2017. No colégio, conheceu o projeto Pedal na trilha e passou a fazer aulas de natação, com professores que fomentam a inclusão de pessoas com deficiência. A essa altura, o treinador Elineldo, chamado pelos alunos de Li, já tinha planos para ela no tatame também.

Depois da primeira vez que o treinador encontrou com Kimberlly cega, ele voltou chorando o percurso inteiro para casa. A sensação era de impotência. “Minha atleta que ganhava tudo quando criança estava naquela situação, e por um erro médico em consequência da diabete”, lamentava. A primeira vez que Kimberlly foi levada à academia de Elineldo pela mãe, ela tinha 6 anos. Seguiu-se uma década de convivência entre treinamentos e competições até a jovem se afastar da modalidade para se dedicar mais à escola e aos trabalhos de assistente e recepcionista que arrumou em clínicas da cidade.

Em abril deste ano, Li perguntou a Kimberlly, acompanhado de muitas lágrimas, se ela tinha coragem de encarar uma “missão gigante” com ele: voltar a treinar kung fu e fazer tudo o que ela fazia antigamente, inclusive, competir. A jovem titubeou, mas aceitou o desafio. “Eu não tinha noção de como faria para entregar o que estava prometendo. Pensava em como faria para dar os comandos a ela, para ensinar a chutar”, confessa o técnico.

Arthur Menescal/Esp. CB/D.A Press
 

Volta aos treinos

Li divulgou um vídeo com a atleta nas redes sociais, até mesmo para solicitar ajuda de quem pudesse instruí-lo a trabalhar com atletas deficientes visuais. Uma das principais dificuldades da lutadora é em relação ao equilíbrio. Isso porque o sistema visual ajuda a ver aonde se encontra a cabeça e o corpo em relação ao meio, e a sentir o movimento entre a própria pessoa e o meio ambiente, como aponta trabalho da pesquisadora Shannon Hoffman, publicado em 2010 pela Associação Americana de Fisioterapia.

“Ao mesmo tempo que parece ser uma coisa antiga para mim, por eu já ter treinado por muito tempo, é tudo novo. É como se eu tivesse voltando a engatinhar, tentando encontrar um modo para que consiga encontrar equilíbrio e força para praticar o kung fu”, explica. Juntos, professor e atleta encontraram um caminho para treinar, como quando o professor a coloca atrás dele e, segurando nas mãos dela, faz o movimento para que ela perceba e possa repeti-lo.

“Os primeiros passos da Kimberlly no kung fu foram comigo e, agora, eu voltava a ensiná-la desde aprender a cair a lidar com desequilíbrio. O frio na barriga era o mesmo”, conta Li. Quando Kimberlly fez os primeiros movimentos, o choro rolou solto na academia. “A minha missão com a arte marcial é muito maior do que eu pensava. Fiquei muito tempo nas artes marciais. Fui atleta da Seleção Brasileira por 10 anos, técnico e, hoje, estou fazendo outro papel”, avalia Elineldo.

A "primeira" competição

Eram 10 anos de experiência no kung fu até Kimberlly Lopes decidir voltar ao esporte. Dos 6 aos 16 anos, ela esteve ao lado do técnico Elineldo Santos. Aos 22, a brasiliense voltou a se familiarizar com os golpes, mas com a perda de 99% da visão. Após ser convidada a participar do Campeonato Brasiliense, a preocupação era de como seria reencontrar as pessoas que a conheceram antes da perda da visão e como se sentiria ao ser apresentada a novas pessoas.

“Agora, a minha visão é o ouvido. Quando tem muito barulho, fico bastante nervosa, porque dói o ouvido. É uma mistura de sentimentos e para controlar é difícil”, explica. Durante a competição, ela domou o nervosismo e conseguiu executar os movimentos planejados. “Confesso que eu estava meio em estado de choque. Depois que consegui fazer tudo, fiquei sentada até parar de tremer e conseguir voltar à respiração normal”, conta.

O irmão mais velho, Hygor Lopes, 29 anos, não esconde o orgulho. Ele testemunhou a irmã se reerguer e, na retomada após a perda da visão, voltou a treinar kung fu com ela. Mas engana-se quem acha que ele pega leve com Kimberlly nos treinamentos. “O pessoal fica bem receoso para treinar ao lado ela, mas eu sei que ela é ‘meio bruta’, então, puxo um pouco mais. Assim como o Elineldo, porque sabemos do potencial dela”, diz Hygor, que, segundo a irmã, é de tudo um pouco: colega de treino, técnico, motorista e fã incondicional, claro.

Diante de tantos desafios, Kimberlly não entende quando as pessoas dizem que o convívio com ela faz bem a todos da academia de artes marciais. “Não consigo perceber como eu ajudo as outras pessoas, mas elas dizem que eu sou um exemplo para elas. Não sei como é isso, mas elas dizem que existe uma troca”, pondera a atleta. A modéstia parece franca, assim como o sorriso que ela estampa no rosto após perder a timidez. Kimberlly não consegue mais ver, mas pode sentir que o sorriso dela desperta emoções no restante dos colegas, familiares, treinadores e até desconhecidos que passam a saber da história dela.