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Tradição, títulos, dívida e amadorismo: história do Deportivo Quito serve de alerta ao Cruzeiro

Um dos clubes mais vitoriosos do futebol equatoriano deixou o seleto grupo dos grandes do país e, afundado em dívidas, praticamente sumiu do mapa

postado em 28/05/2020 06:00 / atualizado em 28/05/2020 10:25

(Foto: Deportivo Quito / Divulgação)
Essa é a história de um time tradicional, detentor de muitas glórias e seguido por uma legião de fanáticos. Contudo, administrações irresponsáveis endividaram o clube, geraram punições da Fifa, rebaixamento nacional e colocaram quase tudo a perder.

Impossível pensar no passado e no presente do Deportivo Quito, do Equador, e não se lembrar do Cruzeiro, que vive a maior crise de sua história. Dentro de campo, a Raposa vai disputar a Segunda Divisão do Campeonato Brasileiro pela primeira vez na história e com menos seis pontos na tabela depois de punição da Fifa pelo calote de uma dívida com o Al Wahda, dos Emirados Árabes. Fora das quatro linhas, ex-dirigentes são investigados pelo Ministério Público e pelas Polícias Civil e Federal por falsificação de documentos, falsidade ideológica, apropriação indébita, organização criminosa e lavagem de dinheiro.

Assim como ocorreu com o Cruzeiro, a derrocada do Deportivo Quito começou com o doce sabor dos títulos nacionais. Em 2008, o time de Quito foi coroado campeão equatoriano depois de 40 anos. Naquela temporada, os dirigentes deram um impulso econômico em busca da taça. Segundo relato da imprensa equatoriana, foi oferecido aos jogadores do time 100 mil dólares (cerca de R$ 220 mil na cotação da época) como bicho a cada atleta pela conquista. Em 2009, a receita se repetiu. O inédito bicampeonato equatoriano escondeu uma dívida que crescia assustadoramente.

(Foto:  AFP PHOTO/Rodrigo BUENDIA)

Isso, contudo, não intimidava os dirigentes, que seguiam gastando. O exemplo mais contundente disso são os contratos firmados com jogadores. O meia Luis Fernando Saritama, por exemplo, tem uma história com a camisa do Deportivo Quito. Ele subiu das categorias de base em 2001 recebendo cerca de 200 dólares ao mês, de acordo com jornalistas do país. Depois, transferiu-se ao futebol peruano e mexicano, voltando ao clube em 2008 para receber 45 mil dólares ao mês (R$ 76,5 mil na cotação de 2008). Quatro anos depois, ele já ganhava cerca de 70 mil dólares mensais (R$ 126 mil na cotação de 2012).
  
"Em 2009, quando foi bicampeão, o time tinha no elenco Michael Antonio Arroyo e Luis Fernando Saritama, jogadores que ganhavam 70, 80 mil dólares. Para a nossa economia, isso é impraticável", afirma o jornalista Carlos Núñez Gaibor, que acompanhou de perto a derrocada do time de Quito.

O momento positivo continuou até 2011, quando o Deportivo Quito venceu mais uma vez o Campeonato Equatoriano. Enquanto a sala de troféus ganhava mais um integrante, a dívida do clube também crescia. De 2008 a 2014, balanços indicam dívida acumulada de 19,5 milhões de dólares (R$ 46,8 milhões na cotação de 2014).

Rebaixamento

(Foto: Deportivo Quito / Divulgação)

Em 2015, começou o pesadelo para os torcedores do time da capital equatoriana. A temporada iniciou com a perda de seis pontos por sanção da Fifa pela dívida com o ex-jogador Néstor Salazar. Os problemas aumentaram. À época, a Federação Equatoriana de Futebol (FEF) tinha regras mais rígidas e exigia que os clubes apresentassem certificados de pagamentos - isso mudou por pressão das agremiações.

Por causa de calotes do Deportivo Quito, a FEF não liberou a entrada do time em campo no jogo contra o River Plate pela liga nacional. Pelo regulamento, o time endividado perde o jogo por 3 a 0. A equipe da capital equatoriana também perdeu pontos por não apresentar o depósito da folha de pagamento dos meses de agosto e setembro daquele ano.

Na tabela acumulada da competição, o Deportivo Quito ficou na última posição, com 44 pontos. O rebaixamento quebrou a série de três conquistas nacionais em quatro anos e mostrou aos torcedores a má gestão do clube

"Este processo foi um pouco complicado para os torcedores. Aos poucos, eles foram vendo o time cair de categoria, uma equipe que levava 20 mil, 30 mil pessoas ao Estádio Olímpico Atahualpa. Os torcedores se uniram, fizeram campanhas pelo Deportivo Quito, mas lamentavelmente a dívida atingiu patamares de cerca de 25 milhões de dólares (R$ 132 milhões)", disse Gaibor.

Mais punições da Fifa

(Foto: Fabrice Coffrini/AFP PHOTO)

Na disputa da Série B em 2016, a crise financeira fez o Deportivo Quito perder ainda mais pontos. A Fifa exigiu a retirada de seis pontos pela dívida com o ex-jogador argentino Martín Andrizzi. Ele jogou no time bicampeão do Equador (2008 e 2009). Andrizzi cobrava cerca de 45 mil dólares (R$ 155 mil na cotação da época).

Outros seis pontos foram descontados pela FEF por falta de pagamento dos salários dos jogadores. Depois, a entidade voltou atrás na decisão. Muitos acreditam que isso ocorreu pela força política do time da capital, como revela o jornalista Antonio Ubilla, um dos maiores conhecedores da história do Deportivo Quito.

"Embora o início de década tenha sido extraordinário, aos poucos fomos conhecendo a dificuldade econômica do clube, causada indevidamente por irresponsabilidade dos dirigentes. E eles contaram com a permissividade da federação local nesse tempo. Luis Chiriboga, que havia sido presidente do Deportivo Quito, tratou de ajudar de todas as formas como presidente da FEF para que o Deportivo Quito não fosse punido da forma como merecia", explica Ubilla.  

Apesar desse apoio ao Deportivo nos bastidores, as perdas de pontos continuaram. A dificuldade econômica era tanta que os jogadores ficaram cinco meses sem receber salários. Ao todo, foram 34 pontos descontados na tabela da Série B em 2016. Esse número fez uma diferença grande no resultado final. O Depotivo Quito foi o último colocado com apenas 2 pontos. O penúltimo foi o Espoli, com 39. Mesmo se escapasse pelos pontos, havia decisão que garantia a queda.

O Deportivo Quito teve de disputar a Segunda Categoria em 2017. Este torneio é bem modesto e dividido em regiões do país. Coube ao time da capital jogar o Campeonato Provincial de Futebol da Segunda Categoria de Pichincha. Dos 11 clubes participantes, o Deportivo Quito ficou na quarta posição. Apenas os dois primeiros avançaram para a fase mata-mata.

Em 2018, mais notícias negativas para o torcedor do Deportivo Quito. O time da capital começou o torneio com menos 24 pontos por novas sanções da Fifa em função de dívidas com os técnicos Carlos Ischia, Nelson Acosta e Marcelo Fleitas, além de débito com o jogador Sebastián Rusculleda.

Futebol amador

(Foto: Deportivo Quito / Divulgação)

Nesse mesmo ano (2018), a Fifa definiu que o Deportivo Quito deveria perder a categoria de clube profissional até que quitasse as suas dívidas. O débito do clube com Martín Andrizzi, que inclusive gerou perda de pontos em 2016, foi o que orientou essa decisão da Fifa.

Nos últimos anos, alguns torcedores abnegados se juntaram e resolveram tentar reescrever a história do clube equatoriano.  

"Agora, há dirigentes com carinho pela camisa, mas enquanto não pagarem as dívidas vai ser impossível o time voltar ao mapa do futebol de ponta. A dívida se mantem praticamente toda, porque foram incapazes de reduzi-la durante todo esse tempo", afirmou Gaibor.   

Em 2019, o Deportivo Quito disputou torneio "em condições próximas ao futebol de bairro", explica o jornal "El Universo".

Em 2020, o time voltou ao Campeonato Provincial de Segunda Categoría de Pichincha, organizado pela Associação de Futebol Não Amador de Pichincha (AFNA). Com processos na Fifa, o clube ainda pode sofrer novas sanções.

O gerente-geral do clube, Jorge Iván Mancheno, não descarta a refundação do Deportivo Quito. “Caso não tenhamos um respiro [dos processos na Fifa], vamos pensar em uma refundação. Se isso acontecer, ninguém nos cobrará. Não quero pensar nisso porque o Deportivo Quito é um dos grandes do futebol equatoriano e por isso não deve morrer”.

Dirigente preso

(Foto: Divulgação)

A crise financeira levou o Deportivo Quito a viver forte instabilidade política. Em dois anos, o clube chegou a ter seis presidentes. Entre 2013 e 2014, passaram pelo cargo principal Iván Vasco, Fernando Mantilla, Eugenio Romero, Esteban Pacheco, Santiago Ribadeneira e Joselito Cobo. E essa troca no poder seguiu firme até os últimos anos.

"Eles nunca puderam demonstrar a honestidade porque sempre fizeram péssimos negócios. Alguns deles tiveram problemas judiciais por questões particulares", explicou Antonio Ubilla. Apesar da crise, o Deportivo Quito nunca chegou a ser alvo de investigações, como ocorreu com o Cruzeiro.

Um dos presidentes mais conhecidos do Deportivo Quito, Fernando Mantilla foi preso em fevereiro de 2014, pouco tempo depois de deixar o comando do clube. Ele era representante da companhia de seguros QBE e foi acusado do crime de lavagem de dinheiro. Entre 2002 e 2006, quando Mantilla trabalhou na companhia, a investigação acredita que ele tenha desviado 10 milhões de dólares (R$ 24 milhões segundo cotação da época).   

Outro ex-presidente, o engenheiro e empresário Santiago Ribadeneira também é investigado. "Fernado Mantilla esteve um tempo na prisão por negócios incorretos à frente de uma companhia de seguros. Foi por uma atividade particular, não por responsabilidade pela equipe de futebol. Ele já recuperou a liberdade. O outro dirigente, Santiago Ribadeneira ainda aguarda prisão. Sentenciaram-no por lavagem de dinheiro em empresa que não tem nada a ver com o clube", explicou Ubilla.

Os dirigentes atuais criticam os mandatários do passado. “Estão aí para todos observarem. Basta ver os presidentes do Quito e os dirigentes entre 2008 até parte de 2017. Eles são os grandes responsáveis”, frisou Jorge Iván Mancheno.

História

(Foto: Twitter Copa América / Divulgação)

O Deportivo Quito é o quinto maior clube em números de títulos do Campeonato Equatoriano, com cinco troféus. O Barcelona de Guayaquil tem 15, o Emelec possui 14, El Nacional detém 13, LDU figura com 11.

O clube enfrentou o Cruzeiro na Copa Libertadores de 2009. Houve empate por 1 a 1 no Equador e vitória cruzeirense por 2 a 0, no Mineirão.

O Deportivo Quito é pioneiro, sendo um dos fundadores do torneio nacional profissional. Aliás, o primeiro gol da história do Campeonato Equatoriano foi feito por um jogador do Deportivo Quito. Ernesto Guerra, em 10 de novembro de 1957, fez um dos gols da vitória sobre o Barcelona por 2 a 1, em Quito.

"O Deportivo Quito é um clube tradicional de Quito. Inicialmente, foi chamado de Argentina. Foi fundado na Praça do Teatro, um parque muito perto da Casa de Governo. Começou como Argentina, com a mesma camisa azul e branco. Em 1954, começou o profissionalismo. Naquele momento, teve que mudar de nome porque o regulamento proibia equipes com nomes de outros países ou marcas. Ganhou a primeira partida e marcou o primeiro gol do primeiro Campeonato Nacional de Futebol Equatoriano, em 1957. Nos anos 1980, apareceu essa figura gigantesca que foi Álex Aguinaga, o maior jogador da nossa história", disse o estudioso do Deportivo Quito, Antonio Ubilla.

Álex Aguinaga é considerado por muitos o maior jogador da história do futebol equatoriano. Ele começou a carreira no Deportivo Quito, em 1984. Ficou no clube até 1989, quando se transferiu para o futebol mexicano. Atuou no Necaxa e no Cruz Azul. No fim de carreira, jogou na LDU. Aguinaga é considerado o principal atleta do futebol equatoriano por ter comandado em campo o selecionado que avançou para a Copa do Mundo de 2002. Aquele foi o primeiro Mundial da Seleção Equatoriana.  

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