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SUPERLIGA FEMININA

Superliga Feminina começa com treinadoras 'excluídas' da competição; CBV 'culpa' as mulheres; especialistas rebatem

Última treinadora a participar da Superliga foi Sandra Mara Leão, em 2016; ela revela que sofreu preconceitos no mundo do vôlei por ser mulher

postado em 12/11/2019 06:00 / atualizado em 11/11/2019 23:35

(Foto: AFP / Johannes EISELE )

A Superliga Feminina de Vôlei começa nesta terça-feira. Algumas das maiores craques do esporte, como Sheilla, do Minas, Fernanda Garay, do Praia Clube, e Jaqueline, do Osasco, serão responsáveis pelos grandes jogos da competição. Se são destaques dentro das quadras, as mulheres não têm vez no comando dos times. Nenhuma das 12 equipes é comandada por uma treinadora, assim como ocorre na competição masculina. Os homens imperam como líderes no vôlei brasileiro.

A última vez que uma mulher treinou uma equipe profissional ocorreu em 2016, quando Sandra Mara Leão levou o Araraquara-SP ao título invicto da divisão de acesso da Superliga. Desde então, nenhuma técnica liderou um time em alguma competição de elite da Confederação Brasileira de Vôlei (CBV). Até Sandra ficou de fora do circuito, sem convites para seguir com a prancheta nas mãos. Hoje, ela coordena um projeto de vôlei da faculdade Uniara, no interior paulista.

Sandra lamenta a ausência de oportunidades para as mulheres no comando das equipes e alerta para uma possível discriminação no meio do vôlei. “Com certeza há dificuldade maior por ser mulher. Acredito que mulheres no alto rendimento são raras em virtude de oportunidades. Acho que faltam oportunidades. No nosso país, não é comum você observar uma mulher liderando uma equipe no alto rendimento. Na verdade, a gente acaba só vendo treinadores e assistentes homens”, frisou.

(Foto: Divulgação / Arquivo Pessoal)
 

Essa realidade é sentida pelas mulheres em muitos países. Na última Olimpíada, em 2016, no Rio de Janeiro, das 24 equipes – 12 no feminino e 12 no masculino – apenas uma seleção era treinada por uma mulher: a China da respeitada técnica Lang Ping. Conhecida por ser exigente e estudiosa, ela levou as asiáticas ao ouro olímpico, com direito a vitória sobre o Brasil nas quartas de final (3 sets a 2), em pleno Maracanãzinho. Na final, a Sérvia foi derrotada por 3 a 1. Durante a Olimpíada, Ping disse que gostaria de ver mais mulheres liderando outras seleções.
 
“Eu acredito que há várias mulheres capazes de ocupar a posição de técnica de uma grande equipe ou seleção. São várias explicações para isso. Muitas ex-jogadoras desistem de seguir carreira para ficar com a família. Mas são várias que poderiam seguir como técnicas. Espero que isso mude nos próximos anos”, disse Lang Ping.

(Foto: AFP / Juan Mabromata )

Dificuldades enfrentadas pelas mulheres

Uma das muitas dificuldades enfrentadas pelas mulheres em cargos de comando é superar o estereótipo de que a liderança é tipicamente uma construção masculina, como explica a professora de Educação Física do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG) e pesquisadora das relações de gênero no esporte, Luiza Aguiar dos Anjos.
 
“Quando a gente pensa em uma mulher que exerce aquilo que é esperado de um líder - assumir uma decisão, contestar seus liderados, ser mais dura em determinadas críticas, porque o esporte muitas vezes não permite que você seja delicado, não há tempo para ter um cuidado maior, não necessariamente defendendo a grosseria e a agressividade, mas você tem que corrigir muito rápido - isso não se alinha com delicadeza, que é o que se espera de uma mulher na cabeça das pessoas. Entendimento de que todo exercício que envolve essa posição de liderança é visto como algo que os homens naturalmente aprendem a exercer com excelência e que as mulheres não sabem ou quando sabem são exceção", analisou Luiza.

Mesmo com qualidades semelhantes às dos homens, as mulheres sofrem com algumas 'barreiras invisíveis' relacionadas ao gênero. A coordenadora do grupo de pesquisa em Educação Física, Gênero e Sociedade da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Ludmila Mourão, explica que existe um processo, conhecido pelos pesquisadores como 'Teto de Vidro',  que subestima as mulheres e valoriza os homens.

(Foto: AFP / YASUYOSHI CHIBA )

 
“Esse fenômeno propõe um modelo de discriminação, tendo como premissa que a produtividade feminina é menor que a capacidade de produção dos homens, uma vez que estes estão em maior número, em plena e pronta capacidade de criação e inovação das tarefas exigidas pelo mercado do esporte e historicamente são considerados superiores. Dessa forma, as mulheres são subestimadas neste cenário e passam a travar uma batalha para a sua inclusão e permanência no mercado de trabalho”, disse.
 
“Percebe-se então que a carreira das mulheres no esporte é dificultada por aspectos socioculturais não muito perceptíveis, relacionados ao gênero, e não à qualificação e competência da mulher. Neste sentido, o fenômeno do Teto de Vidro traz à tona as barreiras invisíveis de poder, do machismo e dos preconceitos a participação da mulher, além da histórica discriminação enfrentada por aquelas que buscam permanecer na gestão, ou cargos de liderança esportivos”, acrescentou.
 
Outro problema para muitas mulheres é o compartilhamento do tempo entre o ambiente familiar e o trabalho. A rotina de um treinador envolve viagens longas e ausência em casa. Segundo a pesquisadora Luiza Aguiar, as mulheres, em geral, sofrem mais com isso, enquanto os homens lidam com 'naturalidade'.
 
“Pesquisas com treinadoras evidenciam que elas se sentem culpadas de se ausentar das famílias, porque se sentem responsáveis pelo cuidado com os filhos e o (a) esposo (a). A ausência, no caso dos homens, é menor sentida. Se ele viajar a trabalho, ele não sente esse mesmo peso que é imposto às mulheres. Além disso, a própria necessidade de ter filhos ela é muito mais colocada para as mulheres do que para os homens. No momento que uma mulher treinadora estaria ascendendo na carreira, é justamente a fase que ela vai decidir se vai ou não ter filhos. Isso é uma questão muito grande para as mulheres", observou Luiza Aguiar.
 

CBV 'culpa' as mulheres; pesquisadores rebatem

(Foto: Divulgação / CBV)


O Superesportes solicitou uma entrevista com algum dirigente da CBV para entender a ausência das treinadoras na Superliga, mas o diretor executivo da entidade, Radames Lattari, não pôde falar em razão da agenda, segundo a assessoria da imprensa da entidade, que enviou uma nota.
 
De acordo com a CBV, falta interesse das próprias mulheres. A entidade diz que há pouca participação delas em cursos de treinadores. “É preciso um maior envolvimento das próprias treinadoras. Nos cursos de treinadores oferecidos pela CBV, não há distinção para gênero, e a procura feminina é infinitamente menor”. A reportagem pediu para ter acesso a esses números, mas não foi respondida pela assessoria.
 
O fato de menos mulheres participarem dos cursos não explica essa completa exclusão, acredita Ludmila Mourão. Para a pesquisadora, “o processo de inserção das mulheres no mercado de trabalho do voleibol não pode ser analisado apenas pela procura nos cursos da CBV”. Mourão ainda faz uma provocação: “Podemos inverter a pergunta e pensar: 'por que as mulheres não procuram os cursos da CBV?' A partir daí, pensar em enfrentar os problemas de gênero que podem estar presentes neste fenômeno”.
 
Já a professora do IFMG, Luiza dos Anjos, entende que a baixa presença de mulheres nos cursos é mais um sintoma de que as mulheres vislumbram menos esse espaço e explica como tentar superar essa exclusão.  “A CBV poderia promover cursos apenas para mulheres no sentido de estimular e de procurar mulheres envolvidas no vôlei e perguntá-las: ‘por que você não faz esse curso?’. Isso para justamente construir um curso que se aproxime dessas mulheres. Se o interesse é estimular e romper com o padrão de desigualdade de gênero, é necessários buscar formas de fazer uma política nesse sentido. Não basta simplesmente não proibir, você tem que estimular".
 
Questionada se é papel dela contribuir para maior diversidade, a CBV se limitou a dizer que “não há distinção no curso de formação de treinadores. Ele está aberto para os dois gêneros da mesma forma, e a CBV espera contar sempre mais com a participação de mulheres nesta formação”.

Esporte, um ambiente machista

 
(Foto: AFP PHOTO / VANDERLEI ALMEIDA )

O esporte quase sempre foi o lugar do homem. No Brasil, por exemplo, algumas modalidades foram restritas às mulheres por um decreto-lei do Estado Novo de 1941, assinado pelo então ditador Getúlio Vargas. O vôlei não estava nesta lista, que incluía futebol, polo aquático e rugby, entre outros. Esse exemplo mostra o ambiente excludente construído em quase todas as modalidades.
 
O professor e chefe do centro olímpico da Universidade de Brasília (UnB), Alexandre Jackson Chan Vianna, explica como o esporte foi um dos espaços de socialização dos homens no início do século XX.
 
“No esporte institucionalizado, federado, profissional e, portanto, onde circula dinheiro, que chamamos do esporte do espetáculo, tem origem e desenvolvimento como espaço reservado masculino. Autores diversos demonstram como os esportes no início do século passado (criação da Olimpíada moderna e institucionalização da maioria dos esportes tradicionais) foram locais para a sociabilidade de homens da classes mais abastadas em reação ao avanço das mulheres em diversos segmentos sociais antes de exclusividade dos homens. Assim, se as mulheres avançam nos direitos a prática esportiva, inclusive profissional, o campo da gestão, dos velhos homens, ainda é um espaço a ser conquistado em razão da resistência masculina em dividir o poder”, destacou.
 
Com o passar do tempo, as mulheres foram conquistando mais espaço. Contudo, ainda existe um universo machista prejudicial a elas. Sandra Mara Leão revelou que enfrentou situações hostis no vôlei simplesmente por ser uma mulher.
 
“Já sofri preconceito, já ouvi comentários maldosos por ser mulher. Uma vez, em um local no qual estavam treinadores reunidos, ouvi uma piadinha muito deselegante. Mas, na Superliga e no Paulista, se aconteceu, eu não percebi. O preconceito é algo que está presente no dia a dia. Como não há nenhum tipo de punição, as pessoas não se preocupam em não demonstrar”, frisou Sandra.
 

Patrocinadores receosos?

 
(Foto: REUTERS/Olivia Harris )

Sandra Mara Leão levanta um debate importante para realçar as diferenças de gênero no vôlei.  Ela sugere que os patrocinadores têm receio de fazer altos investimentos em times comandados por mulheres.
 
“Como não é comum, geralmente os empresários pensam: não é comum? Então, não é viável! Essa é uma das dificuldades”, destacou. “E, por não ser comum, o patrocínio tende a ser receoso na hora de fechar um contrato, o que acaba inviabilizando o trabalho de uma mulher em uma equipe de alto rendimento. Sem patrocínio, como você sustenta e permanece com uma equipe neste nível? No Brasil, as taxas são caras. Não é barato você disputar um Campeonato Paulista; a Superliga nem se fala. Sem patrocínio, sem time”, completou a treinadora.
 
A pesquisadora Ludmila Mourão considera válido esse relato e, a partir dele, avalia que as mulheres são pouco reconhecidas. “Isso sugere que o mercado do esporte e, em especial o do vôlei, tem problemas em valorizar a competência das mulheres e a sua preparação para ocupar estes cargos. Ou seja, ainda somos marcados por uma representação e gestão sexista e patriarcal no esporte”.
 
De forma geral, a busca por patrocínio no vôlei é algo que inviabiliza a continuidade de algumas equipes. Foi o que aconteceu com o Araraquara, da técnica Sandra Mara Leão. Em agosto de 2016, a direção da equipe anunciou a descontinuidade do projeto mesmo com vaga confirmada na Superliga. Nesta temporada, isso também ocorreu com uma equipe masculina. O Botafogo alegou falta de condições financeiras e desistiu de jogar a competição nacional. O Caramuru assumiu a vaga na Superliga.
 

Treinadoras relegadas às categorias de base

 
Sem espaço nos times de elite, as treinadoras são relegadas às equipes de base. “A grande maioria das treinadoras atua na base e, geralmente, trabalha sozinha”, frisa a supervisora do São Caetano, Marina Miotto, uma das poucas a integrar um cargo dentro da cúpula de um grande time.
 
Marina nunca negociou com uma treinadora: “Há poucas no mercado”, argumenta.
 
A configuração que coloca as mulheres nos cargos de menor relevância, como a categoria de base, ainda persiste na nossa sociedade, acredita a pesquisadora Ludmila Mourão. “O que vemos no cenário esportivo são mais mulheres atuando profissionalmente no ensino do esporte e nas categorias de base do que na gestão e no comando do esporte de alto rendimento, liderado pelos homens. O mercado de trabalho ainda tem sido marcado por desigualdades persistente de gênero, esse é um aspecto que deve ser considerado em cargos de comando e liderança no esporte”.

Há muitas mulheres também no comando das duplas do vôlei de praia, como destaca a CBV. "No vôlei de praia contamos, sim, com algumas treinadoras como Cida Santos, Letícia Pessoa, Carol Oliveira, Alba de Oliveira, Mônica Silva, Ana Rita Divino, Isabel Salgado, Nayara Caruzzo, Rejane Cannes, Ivomary Ramos, entre tantas outras”.

(Foto: Divulgação / CBV)

Como superar as barreiras?

 
A despeito das multas dificuldades impostas às mulheres, a treinadora Sandra Mara ainda acredita que é possível mudar esse cenário. Ela dá a ‘receita’: “Enfrentando, tendo coragem, muita persistência, não pode desistir, não pode desanimar. Ao mesmo tempo que tem uma camada da sociedade que é preconceituosa, a gente também tem uma camada que valoriza, que incentiva, que se orgulha”.

“Acho que a gente tem que quebrar os paradigmas dessa questão entre homem e mulher e chegar ao profissional, se ele é competente ou não competente. Assim como em algumas outras profissões que a gente vê mulheres e quando aparece um homem ele deve sofrer de alguma forma, a gente tem que abrir a mente e quebrar os paradigmas, parar de achar que o bom ou o competente está no sexo e não na sua capacidade e formação”, destacou a treinadora.

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