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A criatura contra o criador: entrevista exclusiva com Carlos Queiroz, técnico do Irã

Treinador que levou Cristiano Ronaldo para o Manchester United e o comandou na África do Sul em 2010, reencontra jogador na Copa da Rússia

postado em 25/06/2018 06:00

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Enviado especial a Moscou

As bolinhas do sorteio da Copa foram duras com o técnico moçambicano Carlos Queiroz. Aos 65 anos, o então auxiliar que deu sinal verde para o chefe Alex Ferguson, do Manchester United, contratar uma joia do Sporting chamada Cristiano Ronaldo, pode eliminar ou ser eliminado pelo jogador eleito cinco vezes melhor do mundo, nesta segunda-feira, às 15h, em Saransk, na última rodada do Grupo B da Copa da Rússia. Com três pontos à frente do Irã, o técnico de CR7 no Mundial de 2010, na África do Sul, é obrigado a derrotar Portugal para avançar às oitavas. Do contrário, a cria mandará o criador de volta para casa. No mesmo horário, em Kaliningrado, a Espanha enfrenta o lanterna Marrocos e deve confirmar o primeiro lugar.

Em entrevista exclusiva, Carlos Queiroz fala da relação com Cristiano Ronaldo, sobre o dia em que praticamente deu ordem para o Manchester United contratar o atacante, já que havia dúvida entre CR7 e Quaresma, mas baixa a bola do astro. Na opinião de quem treinou o craque e o viu crescer, o lendário Eusébio foi mais jogador.

Responsável por uma era dourada de Portugal nas divisões de base, com a conquista de dois títulos mundiais sub-20, em 1989 e 1991, Carlos Queiroz avalia por que não deu certo como líder da esquadra principal, se recusa apontar o melhor entre Cristiano Ronaldo, Messi e Neymar, conta como começou a amar a Copa do Mundo lá em Nampula, onde nasceu, e critica o preconceito e a intolerância com o Irã e os povos árabes.

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No livro Liderança, Sir Alex Ferguson disse que o senhor teve um papel fundamental na contratação de Cristiano Ronaldo pelo Manchester United…

As grandes decisões não são magia. Nem capricho. São decisões maturadas. O scouting do Manchester observava jogadores e tomava decisões; naquela altura existiam algumas dúvidas, aliás, no futebol português havia uma grande dúvida sobre quem contratar: Ronaldo ou Quaresma? E eu, que vinha de Portugal, disse: não há dúvidas, é simples, contratem os dois! Não havia dúvidas que eram os dois jogadores que teriam futuro e impacto no clube; precisávamos de opções para lançar no futuro, por exemplo, nos lugares de Giggs e Beckham. Depois formos obrigados a uma escolha e fizemos valer a prioridade Ronaldo, não por desvalorizar o Quaresma, mas porque o risco de se perder o Ronaldo era maior. Fizemos o tal jogo com o Sporting, de inauguração do novo estádio de Alvalade, e a contratação foi fechada.

Eusébio, Figo ou Cristiano Ronaldo?

Eusébio. Se compararmos a importância, a qualidade individual de cada um deles por si só, seria difícil tomar uma decisão. Mas, se associarmos a importância a um contexto, de formação, de competição em que evoluíram, diria que Eusébio atingiu o seu nível num contexto muito mais adverso. O Eusébio atingiu um patamar inimaginável para os mais otimistas, em um Portugal pequeno e sem dimensão. Quem olhar aquele jogador e o projetar nos nossos tempos, e perceber e sentir adversidade, as condições difíceis em que evoluiu, o fato de ter estado à altura de Pele e Di Stéfano, diz tudo da sua importância e qualidade. Comparar é sempre subjetividade e sentimento; mas no contexto em que evoluíram, parece-me mais justo considerá-lo o melhor (português) de todos os tempos. Creio que é justo e creio que é um tributo merecido. Não é por acaso que todos sempre lhe chamavam o King. Todos.

Cristiano Ronaldo, Messi ou Neymar?

Por que escolher? Não cabem os três na mesma equipe? Por favor, não me obrigue a uma escolha. Vamos escolher antes os outros atrás deles, só para concluir um onze e confirmar que ganhamos os jogos (risos).

Portugal disputou oito competições com Cristiano Ronaldo e chegou a cinco semifinais. É o melhor momento da história da seleção portuguesa?

Aqui, os resultados sobrepõem-se à subjetividade. Esse é o momento mais exuberante do futebol português. Esse momento não é um acaso, é o resultado de um percurso, do crescimento, da consistência e afirmação do que a seleção portuguesa tem vindo a fazer nos últimos 25 anos. Agora, é cereja no topo do bolo.

O senhor nasceu em Nampula, Moçambique. Como começou a gostar de futebol?

Foi genético! Filho de jogador e treinador dificilmente podia resultar coisa melhor. Além disso, na África, no ambiente onde nasci, havia só um par de coisas para fazer: futebol e futebol. A combinação, a genética e este ambiente levou-me a essa vida.

E a relação com a Copa?

Líamos revistas que recebíamos de Portugal e da Inglaterra, porque o meu pai conseguia assinar algumas. Nas últimas páginas, algumas revistas tinham índice de filmes disponíveis para alugar. Lembro-me de ver os jogos de Portugal na Copa do Mundo de 1966. Alugávamos o filme e víamos 10 vezes. Decorávamos cada lance. Depois, começou a ter mais filmes. Houve jogos que decorei minuto a minuto. Jogos desse grande Mundial de 1970. Não eram jogos, eram peças de arte disponíveis para alugar. Imagina o que é estar vendo um jogo e a fita partir num lance decisivo? E depois colar a fita? Todo mundo tinha receio de que se perdesse um momento decisivo do jogo!

Quem o levou para Portugal?

Tive uma fase na adolescência em que fui estudar em Portugal e fiquei com os meus avós, perto de Lisboa. Regressei e depois da Independência de Moçambique, fui de vez para Portugal, onde continuei a estudar e acabei por seguir ligado ao futebol.

O senhor levou Portugal ao título do Mundial Sub-20 em 1989 e em 1991, quando derrotou o Brasil na final. Quais são as suas recordações da decisão contra o Brasil?

Foi um momento muito especial, ainda mais que, em 1989, foi em casa, em Portugal. Foi também muito saboroso por ser contra o Brasil na final (em 1989 havíamos eliminado o Brasil nas semifinais). A vitória de 1991 marca a afirmação de um projeto. Se 1989 caiu para muitos como obra do acaso, em 1991, mostramos que o acaso afinal era uma obra. Foi um privilégio para mim, uns anos mais tarde, treinar um jogador daquela seleção (brasileira), o Roberto Carlos. Falar de 1991 era sempre um momento de humor com ele, como, aliás, é característico do Roberto. Muitas vezes nos divertimos com as memórias desse jogo.

Foi sucessor de Luiz Felipe Scolari na seleção de Portugal. O que Felipão deixou de legado?

Foi o legado da confiança no sucesso e no êxito da equipe e dos jogadores portugueses. Ele cimentou a afirmação de qualidade que permitiu ao futebol português, ou à seleção, ganhar prestígio e reputação internacional, e mais confiança e credibilidade. Scolari teve uma passagem brilhante.

Aí, o senhor comandou Portugal na Copa de 2010. Por que foi eliminado tão cedo?

Ficaram duas leituras, a do copo meio cheio e a do copo meio vazio. Apareceu diante de nós o campeão do mundo, que eliminou sucessivamente vários adversários. O primeiro foi Portugal. Poderia ser a final se a nossa posição fosse a da Holanda.

As rebeliões de Deco e Cristiano Ronaldo prejudicaram o seu trabalho na Copa de 2010?

Não reconheço rebeliões nessa competição. Se você se refere a um ou outro comentário após o jogo com a Espanha, também não, porque o Mundial havia acabado. O que prejudicou o trabalho da seleção portuguesa foi o trabalho demonstrado dentro do campo pela seleção espanhola. Se me permite, um gol em impedimento definiu a vitória. Uma decisão errada que, aliás, foi denunciada publicamente pela imprensa brasileira e argentina.

O senhor é o técnico do Irã desde 2011. O que o motivou a aceitar esse desafio?

Foi essencialmente o desafio de trabalhar com uma seleção com enorme potencial; numa altura em que estava de saída da seleção portuguesa. Eu tinha algumas possibilidades, mas os responsáveis pela Federação Iraniana de Futebol quiseram muito que eu fosse para lá. Havia a oportunidade de relançar o potencial e a qualidade do futebol iraniano, apontando também à presença na Copa do Mundo, o que, para mim, com todo o respeito pelas outras competições, é o palco mais importante em que um profissional de futebol pode estar. No Irã, acabamos por cumprir objetivos, fizemos duas classificações (2014 e 2018).

O senhor trabalhou nos Emirados Árabes e no Irã. Há preconceito ao mundo islâmico?

O preconceito existe, e no sentido inverso também. Mais preocupante do que um certo nível de preconceito, é a falta de tolerância, são os fundamentalismos, as posturas de isolamento, os comportamentos radicalizados pela ignorância e a falta de cultura. E isso também existe nas várias sociedades. Quando um indivíduo, como eu, tem oportunidade de conhecer por dentro essas sociedades, nascem sempre novos olhares, e uma nova esperança de que o mundo não é um lugar assim tão mau como algumas pessoas pensam.

Qual é a sua opinião sobre o governo de Mahmud Ahmadineyad e de Hosan Rouhani?

Tenho minhas opiniões, mas, até como cidadão estrangeiro, e como treinador, creio não ser da minha responsabilidade emitir grandes opiniões políticas, seja em que sentido for. O Irã é um país fantástico, com uma história e uma cultura incríveis, que vale mesmo a pena conhecer.