Futebol Nacional

ENTREVISTA

Sandro Meira Ricci defende Neymar e vê Brasil prejudicado na Copa do Mundo

Recém-aposentado, ex-árbitro comenta carreira, projeta futuro e sai em defesa do camisa 10 da Seleção

postado em 13/08/2018 13:58 / atualizado em 13/08/2018 15:51

AFP / Odd ANDERSEN
Formado em Economia pela Universidade de Brasília e cansado da rotina de trabalho em uma empresa especializada em relações públicas, Sandro Meira Ricci resolveu trilhar um caminho parecido com o que muitos jovens brasilienses escolhem: prestar um concurso público isso tudo em 2003. Com o funcionário aprovado, o então chefe não quis saber de conversa e demitiu Ricci, que ainda teria de aguardar quase 7 meses para ser convocado. Com tempo livre, um anúncio do curso de árbitros da Federação de Futebol do Distrito Federal chamou a atenção do economista. Um ano mais tarde, a estreia em um Paranoá x Ceilandense, pela segunda divisão do Campeonato Brasiliense, estava bem longe de todo o glamour de uma partida de Copa do Mundo.

Em 2006, quadro da CBF, cinco anos depois, Fifa. Com apenas três anos entre os melhores do mundo, convite para a Copa do Mundo do Brasil, onde foi o primeiro juiz a marcar um gol com a ajuda da tecnologia da linha. Em meio à algumas polêmicas, lances duvidosos e sucesso rápido, Sandro Meira Ricci chegou, também, ao Mundial da Rússia. Ao Correio, o analista de comércio exterior no Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, falou sobre o Fla-Flu polêmico de 2016, lance “curioso” na Copa América de 2015 e sobre sua relação com os torcedores. Após anunciar a aposentadoria dos gramados após o Mundial, o ex-árbitro também saiu em defesa de Neymar, com quem já travou uma disputa judicial, e também viu o Brasil prejudicado na derrota para a Bélgica, que eliminou o time de Tite da Copa do Mundo da Rússia.

Leia a entrevista na íntegra:

Como você avalia a sua carreira?

Fazendo um balanço, não é normal você ter um árbitro com uma formação recente alcançando competições tão importantes de maneira tão veloz. Trabalhei muito, me dediquei para alcançar meus objetivos. No começo não é Copa do Mundo, mas objetivos e metas alcançáveis, coisas que eu acreditava que podia alcançar. Em 2014, era o árbitro de formação mais recente no quadro da Fifa, só há três anos (Ricci só foi convidado depois que Wilson Seneme e Leandro Vuaden falharam no teste físico). O balanço é positivo, saio satisfeito com tudo que alcancei, que é mais do que eu esperava no começo da minha carreira. 

Em 15 anos, qual jogo mais memorável? Você já apitou até final de Mundial de Clubes…

Antes da Copa de 2014 tinha sido esse, Bayern de Munique e Raja Casablanca, na final de 2013, é um objetivo que todo árbitro sonha. Mas agora é Rússia x Croácia, pela Copa. Jogo do time da casa contra o que acabou sendo vice-campeão. Foi emocionante, e o mais importante é que não se falou de arbitragem no fim do jogo.

E qual foi o jogador que mais te marcou? Qual o melhor que já teve a chance de dirigir?

O Messi, né? Vou citar ele. Foi o que mais chamou minha atenção. Apitei vários jogos da Argentina nas Eliminatórias. Ele tem controle de bola, e admiro que ele aguenta o tranco, o combate, sem perder a posse. É um jogador inteligente… Teve tantos outros craques, mas se for citar um, é o Messi.

Entre as duas Copas que esteve presente, qual foi a mais marcante?

Participar de uma Copa é especial. Claro que participar em casa é algo praticamente inédito. Só dois árbitros conseguiram isso no Brasil (Alberto Malcher apitou em 1950). Seguramente, a de 2014 foi marcante, mas eu curti mais a Copa da Rússia, pois eu pude fazer jogos importantes, mas aproveitei o país, tive a oportunidade de estar em contato com o povo russo, que foi muito generoso e gentil, preparados para receber os turistas. A oportunidade de conhecer coisas além do futebol me encantou mais. No Brasil já conhecia tudo, não teve muita novidade além do futebol. 

Ficou na expectativa de apitar a final?

Fiquei, né? A equipe de arbitragem do Brasil, composta por mim, Marcelo van Gasse, Emerson de Carvalho (assistentes) e Wilton Pereira Sampaio (vídeo), fez três jogos importantes e tivemos boas atuações, como outros trios também fizeram. Existiam alguns candidatos. Obviamente esperava a final, mas é um só trio escolhido, uma só partida. Respeitamos a escolha, claro.

Por ter chances de apitar a final, chegou a torcer contra o Brasil na Copa? Caso a Seleção chegasse, você teria de ir embora...

AFP / Odd ANDERSEN
Sei que o fato de o Brasil não chegar na final não é uma garantia de que eu vá apitar a partida, como aconteceu nas duas Copas que eu estive. Não fazia sentido torcer contra o meu país, não me garante retorno nenhum. Antes de ser árbitro, sou brasileiro. Uma vitória brasileira traria uma emoção importante para o país, em um tempo de turbulência do ponto de vista político e econômico. O retorno seria bacana para o Brasil. Não tem correlação, logo não torço contra.

Mudaria alguma decisão que tomou na carreira?

Acredito que não. Depois de tudo que alcancei, não mudaria nada.

Quem é o próximo árbitro brasileiro em Copas? Tem algum palpite?

Wilton Pereira Sampaio. Eu comecei com ele, não ao contrário. Ele é um árbitro daqui (Teresina de Goiás), tem vasta experiência nacional e internacional, além da experiência no arbitro de vídeo. É um profissional que fez vários jogos de Eliminatórias, como aquele Argentina x Peru, o mais complicado da competição na minha opinião. Ele foi lá e resolveu. É o árbitro que estará na Copa América do ano que vem e está na frente dos outros. Só depende dele.

E agora? Tem propostas para comentar arbitragem na TV? Arnaldo Cezar Coelho já anunciou aposentadoria no fim do ano...

Como eu vou responder essa pergunta (risos)? Tenho algumas sondagens para televisão e para gestão de arbitragem fora do país, mas nada ainda confirmado. 

E agora, justamente quando você está saindo, o árbitro de vídeo surge. Você acha que o Brasil está no caminho certo quanto ao uso da tecnologia?

Qualquer associação nacional que queira implementar o VAR (sigla em ingês para árbitro de vídeo) tem de cumprir um protocolo, com testes offline, capacitação e outras coisas. A CBF cumpriu com os requisitos, testou em jogos reais em competições estaduais. Fizeram treinamentos, aproveitaram experiência de árbitros que treinaram na Conmebol (Confederação Sul-Americana de Futebol). O VAR não garante 100% de precisão, mas o processo é irreversível. Ele traz justiça, objetivo maior da arbitragem. Acredito que a CBF caminha na direção do que a FIFA executa.

Mas, no início do ano, chegou-se a comentar sobre a chance de VAR no Brasileirão desse ano, só que alguns clubes foram contra, já que teriam que arcar com os gastos. Você não acha que a CBF deve ser a responsável por esse pagamento?

Com certeza a CBF deveria assumir. A Fifa e a Conmebol pagam pelo vídeo. Nos outros países que usam, como a Itália, quem paga é a organizadora da competição, que é uma liga de clubes. Quem tem que bancar é o maior interessado, o organizador da competição. A CBF deve arcar, como está fazendo agora na Copa do Brasil. A CBF declarou um lucro de mais de 50 milhões de reais, além de mais de R$ 300 milhões em caixa. Não vejo sentido, em uma entidade que deseja promover o futebol, que haja esse lucro todo. Ela não tem objetivo de lucrar para seus acionistas, que são os torcedores e clubes. 

Quando reconhecido, você é cobrado na rua por torcedores descontentes com alguma decisão sua dentro de campo? Como você reage?

As pessoas não me reconhecem muito. Reconhecem meu nome, não meu rosto. O cara olha para mim e não tem certeza. Quando olham meu nome, relembram. Isso é bom. Sou um cara que não gosta de ser reconhecido, não é meu perfil. Mas geralmente é uma cobrança natural de torcedor, na base da brincadeira. Eu levo na esportiva, não passando dos limites, agressividade verbal, sempre aceitei brincadeiras no limite do razoável. Agora que tenho rede social, consigo conversar com as pessoas, que muitas vezes acham que o árbitro não é um ser humano. Tenho conseguido reverter essa imagem.

Um dos jogos mais polêmicos da sua carreira foi Fluminense x Flamengo, pelo Brasileirão de 2016. Os jogadores do Fluminense reclamam que você teria recebido informação de fora. O que aconteceu?

Foi um lance relativamente fácil, bem anulado, em um primeiro momento, pelo Emerson de Carvalho. Porém, após a reclamação dos jogadores do Fluminense, o Emerson ficou na dúvida de quem tinha feito o gol, então voltou atrás e eu validei o lance. A partir daí, os atletas do Flamengo que reclamaram, vendo que os protestos do rival foram atendidos. Eu vi nos olhos do Emerson que ele estava confuso e dei tranquilidade para ele decidir. Aí, o van Gasse saiu do outro lado de campo e nos instruiu a manter a primeira marcação, de impedimento. Falei para os jogadores que confio nos meus assistentes e anulei, acertadamente. 

Por que tanta demora para a bola voltar a rolar (foram 13 minutos de pausa)? Houve interferência externa? 

Não houve nenhuma interferência externa. Nego totalmente. Os jogadores receberam a informação, mas para gente não chegou nada, de jeito nenhum. Infelizmente, o procedimento foi inadequado, mas tinham mais de 50 pessoas em campo, eu não iria reiniciar rapidamente, esperei a confusão acabar.

Outro lance polêmico foi aquela dedada de Jara em Cavani, na Copa América de 2015. Foi o lance mais curioso da sua carreira? 

Prefiro dizer que o lance mais curioso foi o gol do Benzema (risos). O lance com o Jara foi difícil de ver na hora. Gosto de falar que o jogador chileno foi cirúrgico. Infelizmente a gente tem de conviver com esse tipo de conduta de um jogador que a gente imagina que seja profissional, principalmente em jogo de seleções. Mas, nada acontece por acaso. Ele aprendeu, perdeu um contrato na Alemanha (foi vendido pelo Mainz para a Universidad de Chile). Não tinha VAR, se tivesse, com certeza eu interviria, seria expulso (Cavani acabou recebendo o cartão vermelho por reagir ao ato do chileno).

Por falar em conduta de jogador de Seleção, há um tempo, você teve um problema com o Neymar… (O atacante foi condenado a pagar R$ 15 mil ao árbitro após usar uma rede social para criticar o trabalho de Ricci em um jogo do Santos, em 2011)

Ele que teve um problema comigo… (interrompendo)

De uma certa forma, você “esperava” que em alguma hora a opinião pública fosse contra o Neymar?

Tenho opinião de torcedor. Quem esperava mesmo era o Renê Simões, que advertiu todo mundo sobre a maneira que estávamos lidando com ele. Eu acho que existe exagero de ambas as partes. Dele, pelas simulações, reações às faltas. Ele sofre muita falta, de fato. Ele é um jogador que chama a responsabilidade, ele mantém a posse de bola e desequilibra, claro que é caçado. Acho que existe exagero da imprensa de marcar o comportamento dele. Como pode uma pessoa passar de top 3 no mundo para responsável por uma eliminação em um ano? É um cara que tem que mudar completamente? Quem vai convencer ele disso? Toda a vida esportiva dele rende frutos. É difícil você ter que afirmar que ele tem que mudar totalmente. A imprensa é que diz isso, mas se ele fosse seguir sempre o que a imprensa diz, não teria personalidade, ficaria mudando a todo momento. O Neymar tem personalidade forte, ele sabe o que tem fazer para melhorar, ninguém precisa falar para ele. A tendência é que a experiência negativa na Rússia traga resultados no futuro. A derrota, tudo que está acontecendo, vai torná-lo mais forte.

Dentro de campo, um jogador como o Neymar entra “marcado” pela arbitragem?

Qualquer jogador do quilate do Neymar merece mais atenção. Você não trata diferente, mas precisa ter atenção especial aos jogadores que desequilibram. Ele é o jogador que será caçado, precisa de uma leitura prévia por parte da arbitragem. Com o tempo, ele tem esquecido os árbitros. Ele entendeu isso, vejo ele discutindo mais com rivais, ele reage porque não amarela, mas com relação aos árbitros vejo que ele melhorou muito. Qualquer jogador que tem característica diferente a gente tem que prestar mais atenção.

Acha que o mexicano Layún, que pisou em Neymar fora de campo, deveria ter sido expulso no lance? Acredita que, pelo menos, o árbitro deveria ter olhado o VAR?

O protocolo é claro. O vídeo tem de intervir em lances que podem ser para cartão vermelho. Para mim, não era de vermelho, ele não agride o Neymar. Ele provoca, porque conhece a personalidade do brasileiro. O árbitro de vídeo deve ter pensado dessa maneira. Houve um diálogo no campo e o juiz não quis ver. Pelo treinamento, houve comunicação e ele não quis olhar. Para mim deveria ter ido, mas aplicado apenas o amarelo.

Tivemos alguns lances polêmicos envolvendo arbitragem nos jogos do Brasil na Copa. Acha que o time de Tite foi prejudicado?

AFP / Giuseppe CACACE
Eu acho que, em jogos do Brasil, tivemos quatro jogadas em que o VAR deveria ter sido utilizado. No lance do gol da Suíça, com a possível falta em Miranda, no pênalti marcado contra a Costa Rica, no pisão do mexicano e em um pênalti no Gabriel Jesus, contra a Bélgica. Não estou dizendo que as decisões foram erradas, mas infelizmente, para o Brasil, só olharam o lance do pênalti no Neymar, que acabou sendo desmarcado, e eu concordei com a decisão. Os demais, foram incidentes não vistos, lances que o protocolo do VAR prevê revisão. Não acho que o Brasil saiu da Copa por culpa da arbitragem, mas, no lance do Jesus contra a Bélgica, achei pênalti.

Acha que o voto do Coronel Nunes para Marrocos sediar a Copa de 2026 pode ter deixado o Brasil “marcado” na Copa do Mundo?

Eu não tenho essa informação, responder isso seria leviano. Quero acreditar que não houve nada disso, prefiro acreditar, inclusive. Seria lamentável.

O que falta para que a arbitragem brasileira melhore?

Quatro pontos são fundamentais. Vídeo, profissionalização, treinamento continuado e o fim do sorteio. O VAR é um passo gigantesco, dá espaço para o árbitro trabalhar com mais tranquilidade e ter mais calma para gerir e planejar o trabalho. Além disso, pelo menos os árbitros de Série A deveriam ter melhor tratamento. Hoje, acaba um jogo 1h da manhã e às 4h eu tenho voo para vir para casa, por exemplo. A remuneração também tem de ser compatível, com um salário fixo, além dos bônus por partidas, e faltam condições de treinamento. Sobre o sorteio, é muito confortável para o gestor deixar a escolha à sorte. Ele tem que ser responsabilizado, também, por quem apita as partidas. Não existe mágica, essas medidas transformariam a arbitragem brasileira

Como é o treinamento da arbitragem no Brasil?

O árbitro treina no campo, treina apitando, o treino da profissão é no jogo. Resumindo, cada um cuida da sua carreira. Não há treinamento simulado com jogador, só orientação. Não tem treino tático acompanhado. Duas vezes por ano, a CBF organiza uma semana, no máximo, com alguns treinamentos assim, o resto é corrida no meio da rua, a critério de cada um.
 
Aqui em Brasília, há pelo menos dois anos, a Federação de Futebol do Distrito Federal (FFDF) não consegue nem pagar os árbitros antes dos jogos, como prevê o Estatuto do Torcedor, Lei Federal…

Não sabia disso, mas é um grande desmotivador. O árbitro recebe por partida trabalhada. Quando ele trabalha e não recebe, como qualquer prestador de serviço, ele não fica satisfeito. Isso leva ele a não treinar, não se dedicar o tanto que deveria. Organizar um torneio sem previsão orçamentária para a arbitragem é temerário. O Campeonato daqui precisa de gestão profissional, para atrair novamente o público e dinheiro. Se a Justiça Desportiva punir com multa pela falta de pagamento, os clubes e a FFDF, já sem dinheiro, entrarão numa bola de neve… é bem complicado.

No mês que vem você se casa com a Fernanda Colombo, ex-assistente. Acha que ela saiu da profissão por sofrer com o machismo? O erro de uma mulher repercute mais no futebol?

É ela quem deveria responder isso, mas acho que sim. No Brasil, o preconceito ainda é menor, já que temos várias assistentes aqui. Na Conmebol, não se vê isso. Eu acho que elas têm total condição de serem bandeirinhas em um jogo de Libertadores, por exemplo. Como árbitro de campo, acho difícil pela questão física, genética mesmo, de acompanhar o jogo por 90 minutos. No caso especial da Fernanda, ela ainda é bonita, e as pessoas podem achar que ela alcança as coisas pela beleza. O erro da mulher, infelizmente, repercute mais. O torcedor machista acha que o homem erra por ser humano, mas se é mulher, fala que ela não tem condição de estar ali.