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ESPECIAL JOAQUIM CRUZ

Projeto de Joaquim Cruz alimenta sonhos

Carlos Vieira/CB/D.A Press

Eles não correm mais com os pés diretamente na poeira, ainda que o Clube dos descalSOS — assim mesmo, como um pedido de socorro no fim — seja o nome que eles carregam nas inscrições. Mas continuam treinando no barro por não haver outra opção. Uma pista de medidas oficiais e piso sintético faria muita diferença nas passadas abertas de cada um dos 120 jovens atendidos pelo Instituto Joaquim Cruz (IJC), como se quisessem conquistar o mundo com um só movimento de pernas.

A pegada, que marca o terreno mas logo é apagada pelas outras que vem atrás, faz a poeira subir e logo colore a camiseta branca do ICJ de um vermelho que arde os olhos — não por causa da cor. E, misturada aos abraços de mãos ainda mais sujas, deixa a humildade do DNA e as três letras da sigla que carregam no peito ainda mais camufladas. É que as condições ruins são ainda melhores do que as de 40 anos atrás, quando Joaquim Cruz era “abandonado”, de carro, pelo técnico então Luiz Alberto de Oliveira na Floresta Nacional e precisava voltar a pé em um estilo de treino considerado avançado para a época. E, no Rio Grande do Norte, Evaristo Neto corria meio troncho porque tinha de segurar o short sem elástico na cintura, com medo dele cair durante um pique de pernas mais livres.

A parceria do campeão olímpico que começou mandando tênis usados dos Estados Unidos para o maridão de Keiliane Caetano, da Quadra 105 do Recanto das Emas, iniciada há 11 anos, hoje acode uma centena de jovens de 12 a 17 anos, também em Ceilândia e Águas Lindas, dispostos a se sujarem para alcançar o alto do pódio — independentemente do que isso signifique. Diariamente, eles vão até os locais de treino para uma espécie de garimpo que começou com convocações nas escolas, mas que hoje quase “se esconde” pois precisaria de mais apoio para atender toda a demanda. O aporte de uma fornecedora de materiais esportivos e de um banco permitem ajudar apenas 120 pessoas, enquanto as inscrições não param de chegar. E os benefícios também.

Mesmo para quem delimita raias improvisadas diariamente com barbante e cal, fica difícil dizer onde termina a vida e onde começa o atletismo ali naquele quadrilátero. "É tanto tempo envolvida no projeto que não dá para diferenciar", avisa Keiliane, coordenadora do núcleo do Recanto das Emas, o principal, antes de um marido cheio de palavras dominar as atenções dela e dos dezenas de jovens atentos, buscando sugar o máximo de conhecimento. Na plateia, Vida Aurora, 13 anos, Alex Evangelista, 13, e Gabriel Guilherme, 18: os três filhos do casal que não faz questão de diferenciá-los dos demais, ainda que seja bem difícil.

De batom vermelho e cabelo bem cuidado, a menina é a segunda mais rápida da turma com um ano a menos. Enquanto Gabriel, que teve paralisia cerebral quando nasceu, faz força para manter o corpo estirado e acompanhar o ritmo dos outros. Tão descontraído, que é um dos poucos a brincar com o nome de quem, ali, é sagrado: diz, aos risos, que falar com Joaquim Cruz antes da prova dá azar, e se nega a repetir a comemoração imortalizada por ele — bandeira do Brasil nas mãos — mesmo sonhando em ser atleta. Ou melhor, já se considerando um.

“Nem todo mundo aqui vai ser campeão, mas vai aprender que do lado de cá é melhor. Que quando a gente está no esporte, no meio de muita gente, não tem onde se esconder”, tenta explicar Evaristo, que construía casa de pau a pique para viver até convencer as pessoas da comunidade a correrem no terreno baldio. “Perdi as contas de quantos animais eu enterrei aqui”, conta, lembrando que tentava dar um fim mais digno aos cachorros mortos jogados na área abandonada. Cemitério de onde, recentemente, saíram quatro atletas para a Seleção Brasileira de Atletismo e recordes. Em meio a "passar pelo mato, pular naquele espaço e saltar", eles também deixam outras marcas. Com mãos e pés limpos, essas hão de ficar.